11 de dezembro de 2005

ENTERRO DO S. MARTINHO - 2005

" AVISAR O S. MARTINHO "

DE 10 PARA 11 DE NOVEMBRO - 2005

Como sempre, ou pelo menos desde que há memória, um grupo confidencial de Vilafranquenses, "disfarçados de anónimos", saíu à rua, pela calada da noite, a "avisar o S. Martinho". Noite agora menos "calada" porque há iluminação pública mais do que suficiente para mostrar "os anónimos" a quem se dispuser a ir espreitar às janelas das casas...

Mas lá saíram do Largo do Rossio, ao que se soube já depois das doze badaladas com que o sino da Capela assinalou a meia-noite de dia 10 de Novembro. A ser assim e por uma questão de rigor, os avisos do S. Martinho 2005, começaram já com a madrugada do nascimento do dia 11, afinal o dia tradicionalmente fixado para o S. Martinho.


E pelo som telúrico das vozes ampliadas pelos funis ( ou sucedâneos) e do grosso e ritmado "dlão-dlão-dlão" dos grandes chocalhos pastoris, a volta ao Povo terá demorado pouco mais de uma hora.

Concluída a volta, parece que apenas pelas principais ruas, o grupo acabou a retemperar o corpo ( e a alma) em casa de um dos seus componentes.

A garotada que acordou com os avisos, perguntou aos pais o que era aquilo, lá fora na rua, e os pais responderam-lhe como também, anos antes, os seus pais já lhes tinham respondido a idêntica pergunta.

A noite esteve fria, de quase lua cheia. A Serra da Estrela já tinha neve no coruto e o vento, ao passar por lá, aguçou as facas para nos cortar o rosto, cá em baixo, no planalto beirão. Sobretudo àqueles que andaram a "avisar o S. Martinho" em Vila Franca da Beira.



" MAGUSTO DE S. MARTINHO " TARDE-NOITE - 11 DE NOVEMBRO - SEDE DA UNIÃO



De novo com as Castanhas e as bebidas a servirem-se na Sede da União. Sete horas da tarde-noite, conforme o programa, lá subiram e estoiraram alguns foguetes a convocar o Povo para a festança. Já houve tempos, em que este tipo de avisos, a convocar o Povo, era feito com recurso a búzios do mar -- sim, aqui em Vila Franca da Beira - ou utilizando um grande corno (chifre) de boi. Com a facilidade de acesso à pirotecnia, agora sobem e estralejam os foguetes. É festa.

Muita Castanha - como ultimamente, assadas no forno ( a lenha) de cozer pão da senhora Teresa Lopes Marques, "Minéria". Várias bebidas, umas mais espirituosas que outras, quase todas "quentes"...

E muitos dos convivas deste Magusto de S. Martinho já chegaram depois de jantar ou seja, já vinham com o estômago composto de casa e, então, foi continuar com a "sobremesa" de castanhas com vinho, jeropiga, bagaço, etc.

Eram já 21 horas e 30 quando se encerrou o Magusto e todos saíram para a rua em direcção ao Largo do Rossio de onde, logo a seguir, partiria a "procissão" do "Enterro do S. Martinho".




CENAS DO " ENTERRO DO S. MARTINHO " PELAS RUAS DE VILA FRANCA DA BEIRA

Dia / Noite de S. Martinho, 11 de Novembro, 2005. Largo do Rossio ou, também, Largo Dr. Agostinho Antunes. Passa das 21 horas e 30. Apaga-se a iluminação pública e logo aparece a "Irmandade do S. Martinho" já em formação. À frente, erguido ao alto por um dos “Irmãos”, vem o "rôdo" do forno de cozer o pão - normalmente uma vara obtida de tronco escorreito de pinheiro cortado muito jovem, aí com uns três/quatro metros de comprido, com um outro pedaço de pau pregado em “T”, na extremidade.

O “rôdo” serve para retirar as brasas e a “borralha” quente de dentro do forno de cozer o pão mas, na função da noite, é o guia erguido ao alto pelo “Irmão” que caminha a meio das duas alas laterais da "Irmandade", ao todo composta por vinte elementos empunhando archotes ( de jardim) acesos. Já vem Povo atrás. Param. À luz dos archotes, é agora visível a padiola - artefacto em madeira antes utilizado, nas lides agrícolas, para transportar, à mão, certas cargas (carregos). Deitado em cima da padiola, vem um boneco, à escala natural, simbolizando o cadáver do S. Martinho. Quatro braços vigorosos suspendem este “andor” profano. Um "pormenor" - e que "pormenor"... - chama a atenção:- o boneco exibe um portentoso falo (pénis), agressivamente erecto e rubro...assim como exibe “ o resto” da genitália masculina!... Trata-se de um elemento que não estava presente na encenação tradicional de que nos lembramos, mas que os actuais dinamizadores insistem em colocar no boneco. O "pormenor" torna-se imediatamente o centro das atenções gerais e dos ditos e "muafas" (trejeitos gestuais) dos "encomendadores" ( espécie de padres de arremedo) deste ano, o Ernesto e o Pedro "Bufo", muito diferentes dos entre nós mais tradicionais "encomendadores" e que agora não participaram ( o Carlos Sacristão e o António "Zangarilho").

A meio do percurso, juntam-se-lhes uma mulher e mais tarde outra ainda. Constitui uma grande novidade, este facto da participação de mulheres enquanto "encomendadoras" ( ou encomendadeiras ? ) no Enterro, o que lhes dá um papel mais central nas cenas. Há poucos anos tinham-se incluído mulheres com algum papel mais activo na "procissão/enterro" mas apenas enquanto "viúvas" e "carpideiras" do S. Martinho. Curiosamente, ninguém pareceu muito "chocado" com o enorme, sempre erecto e rubro falo (e outros viris apetrechos) do boneco... Talvez que alguma criança, das mais pequenas, também tenha agora perguntado aos pais o que era aquilo que ia no meio das pernas do boneco do S. Martinho...

E com as paragens do costume - Largo da Capela - Cimo do Povo - Largo do Cruzeiro - lá seguiu a "procissão" deste "Enterro do S. Martinho", 2005. Muita gente e de todas as idades. Feito o "ó" da volta ao Povo, é o regresso ao Largo do Rossio. Então, o boneco sai da padiola e é içado para o tubo ( este ano foi um tubo metálico) de onde fica pendurado. Atiça-se-lhe o fogo que crepita e o envolve todo em chamas...que dançam e dançam enquanto o "purificam". Caem os restos do boneco e continuam a arder, já no chão, “aos pés” do tubo vertical. Sobem foguetes e estoiram no ar, com lágrimas e tudo. Aparecem mais castanhas assadas, mais vinho e jeropiga... Hora e pouco depois de se ter iniciado, em "procissão", mais um "Enterro do S. Martinho", o Povo, já serenado, permanece em volta, no Largo do Rossio, em convívio "tribal"... As ruas apertadas, as sombras da noite, as silhuetas das casas e das árvores, agora também elas parecem estar mais em harmonia com a natureza de cada ser e com “a alma” de todos nós.

CELEBRAÇÃO ACTUAL DE RELIGIÕES PRIMITIVAS

As gentes e os seus muitos sentidos, a Povoação, as matas envolventes, a noite, o frio, a lua e as estrelas cintilantes, todos os “elementos” convocados para o exorcismo dos medos íntimos e das tensões sociais, esses “elementos” absorveram e expandiram as "energias - forças" emitidas através das cenas rituais. Assim como um exorcismo (catarse) colectivo vindo das cargas genéticas e da própria natureza no seu todo cósmico. Impulsos ancestrais vindos das profundezas de cada um e de todos os que (ainda) os sentem. Impulsos vindos dos próprios elementos mais dinâmicos deste universo, que entre si se conjugam ou desconjugam para influenciar a vida e a morte. Sim, no fundo, no fundo, trata-se de formas de celebração de alguma religião primitiva e mais determinante que qualquer das perversidades religiosas (muito) posteriores. Às primeiras, às mais genuínas religiões da civilização, houve quem, muito depois, as designasse por "paganismo" e com toda a intolerância e violência possíveis, mas também com habilidade noutros casos, as proscrevesse – tentasse proscrever - dos hábitos das gens e dos povos conquistados pela espada e pela cruz, as duas irmãs siamesas “baptizadas” de cristãs e católicas...

“ A TRADIÇÃO ” PODE RENOVAR-SE E CONTINUAR A SER TRADIÇÃO...


A força "da tradição" ainda hoje é forte e é capaz de reviver nas novas condições. Mas, “a tradição", apesar de tudo, também já não é como era e ainda bem. No "Enterro do S. Martinho", em Vila Franca da Beira, nos últimos anos e mais ou menos espontaneamente, têm surgido novos elementos "cénicos” e “coreográficos". Por exemplo, está a ter muita força o "impulso" para as celebrações tipicamente do Entrudo, com a introdução de elementos mais provocatórios como acontece com o singular falo (pénis) do boneco que vai na “procissão”... Mas também nisto podemos (re)entrar nos rituais antigos (e actuais) do culto da fertilidade. Mas, provavelmente que a grande "inovação" seja a participação activa de mulheres enquanto personagens centrais da "procissão / enterro". Talvez um regresso ao matriarcado de há cinco mil ou mais anos atrás, quando por aqui, pelo agora nosso planalto beirão, as gens e as tribos, (ainda) lideradas pelas mulheres, começaram a pastorear, umas, e a sedentarizarem-se mais na agricultura, outras...

Seja como for, “a tradição” pode ser revisitada e actualizada. Desde que, com a excessiva preparação (intelectualização) prévia, não se liquide o espontâneo e saudavelmente "selvagem" que há em nós. A propósito, durante o percurso, a organização continuou a fazer ouvir – através de aparelhagem sonora transportada em carro-de-mão -- o muito “civilizado” e urbano “Requiem” (uma “missa dos mortos”) do Amadeus Mozart...

E, agora, digam lá o que quiserem, mas quem já conseguiu participar sem preconceito na “procissão” e assim experimentou a “catarse” – ou o exorcismo - ao longo das ruas, também a seguir experimentou o sentimento de descontracção individual e social depois de encerrado o “Enterro do S. Martinho”, no Largo do Rossio. É ! Tal como já disse o Poeta, “mais vale experimentá-lo que julgá-lo...mas julgue-o quem não pode experimentá-lo” .

João Dinis, Jano

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