10 de dezembro de 2005

Novembro de 2004

novembro 26, 2004

"Enterro de S. Martinho" - 2004 - Texto e Fotos
"AVISAR O S. MARTINHO" -- durante a noite de 10 para 11 de Novembro, 2004 --


Bate a meia-noite no sino da torre da Capela... Junto, sai o grupo "confidencial" deste ano 2004. Ao que depois se soube, com alguns "repetentes" de anos anteriores. Noite escura, que a iluminação pública só pontualmente e a custo rompe. Mais luz, apenas no Largo da Capela com os candeeiros amarelos a esbanjar energia. De qualquer forma, quanto mais escuro ... melhor para o efeito pretendido.


"Avisar o S. Martinho", 2004. Noite de 10 para 11 - Novembro. O Grupo "confidencial" que saiu à rua

Meia-dúzia de compinchas que furtivamente saem... A "avisar o S. Martinho", nesta noite fria e cristalina, pelas portas dos Vilafranquenses já recolhidos e em descanso. Os cúmplices nocturnos levam, com eles, dois funis, dos grandes, para disfarçar e ampliar as vozes dos "avisadores". E mais três chocalhos, dos maiores, daqueles que quase vergam os pescoços fortes dos mais fortes "chibos" (bodes) e carneiros quando estes são (eram) enfeitados em ocasiões de grandes e festivos ajuntamentos de rebanhos, sobretudo quando iam para ou quando chegavam da Serra (Estrela), em transumância. Servem, estes "chocalhões", para abarulhar, com o seu som repetido e grave, após cada "aviso", em cada casa... Sons profundos, quase parece virem das entranhas de outros tempos... para quem os escuta, assim, de noite, ainda meio a dormir, dentro de casa...

E lá arranca a lenga-lenga:

-- " Óóóó sanhor fulano de tal -- No cááá ' stááá ( esta formulação é claramente em homenagem ao saudoso "Velhão"...) ... foi pró Boqueeedo ... atão, fic ' ávisado pra comparecer no Largo do Rossio ... com um garrafão de vinho ... pra emborrachar o S. Martiiinhooo !!! Se nãaao, paga quarenta e cinco prás cadeias do sino, e calha-lhe maaal !!!" .

Pois, sai mais ritmada e entoada, a lenga-lenga. Tentando obedecer a "sonoridades" de antanho. Aliás, desta vez, percebia-se a acção de algum "veterano" na matéria, exactamente pelo arrastar e pelas modulações dos "avisos". Para quem (ainda) sabe como era, para além e por sobre a ampliação puramente sonora das vozes dos "avisadores" ( através dos funis), na experiência do brado, por sobre isso pairam os ecos da noite escura, e dos próprios medos individuais e colectivos. É preciso ser-se rural, e já com uma certa idade, para se sentir o contexto...

Uma após outra, das esquinas das casas onde é suposto estarem recolhidos os "avisados", faz-se a ronda pelas ruas da Terra. Sem incidentes, ao que sabemos. Aqui, não é hábito entrar-se na crítica social, mais "a doer", como noutras localidades se faz, designadamente pelo Entrudo. A luz pública também é inibidora de eventuais exageros...

Ao que dizem, dura aí duas horas, a volta ao Povo, bem dada. Portanto, pelas duas da manhã ( 11 de Novembro) acaba a função. Por norma, no final, os "avisadores" emborcam mais uns copos... Com alguma sorte ainda aparece um queijito ou uma chouricita, para retraçar...

Assim se cumpre a tradição. Mais ou menos como ela era.

Consta que a garotada, aquela que acorda assarapantada com o "roncar" dos nocturnos funis e o "dlão, dlão" dos chocalhos, consta que a garotada ( e um ou outro jovem surpreso...) corre para os pais, a perguntar o que se passa... e que no dia seguinte ainda insiste nas mesmas e inquietas perguntas a que os pais dão evasivas respostas. Já a criar clima para o "Enterro do S. Martinho", na noite de 11 de Novembro...

Magusto – dia 11 de Novembro – Sede da UDV

É tradicional pois claro… Castanhas, água-pé, vinho, jeropiga ( ou jorpiga). Desta vez foi na Sede da União. A partir das 19 horas. Mesa posta. Ei-las que chegam “quentes e boas”, as castanhas. Vêm ao direitinho do forno de “cozer o pão” da Ti Teresa Minéria (filha). Não, que a esta hora de um dia de semana não se ia assá-las ao ar livre com a caruma ainda mais tradicional… Vinho e outras bebidas à disposição.

Magusto na sede da UDV

Chegam as gentes. Quase todas já jantadas. No mínimo com uma sopinha prévia a aquecer o estômago que a noite chegou fria. Lá fora sopra o “Soão” e a nortada é à moda antiga… Bom, saltam umas castanhas para a mesa e logo se inicia o Magusto.

Magusto na sede da UDV
E à medida que são comidas e regadas com a boa pinga é nítida a subida da temperatura ambiente… A garotada corre e grita enxotada de vez em quando pelos mais velhos. Estes vão falando cada vez mais alto. Chegam as 21 horas. É tempo de ir para o Largo do Rossio. Afinal é de lá que arranca o “Enterro do S. Martinho”.

Enterro do S. Martinho – 2004

11 de Novembro – a partir das 21 horas.

É a tradição revisitada pelo terceiro ano consecutivo. Elementos novos vão ser introduzidos. Para quebrar a rotina e actualizar a encenação. Sim, que de uma encenação se trata. O Povo decide representar mais um “drama” do seu Enterro do S. Martinho. Mas sem drama algum de facto. Apenas com muita improvisação. Aliás, é permanente o tom brejeiro, e não raras vezes apimentado, com que o Carlos Sacristão “encomenda” o S. Martinho, nos ditos, versalhadas e latinórios com que anima todo o percurso. Aliás, estalejam foguetes. Se quiséssemos especular, diríamos que o Povo quer exorcizar o medo da morte… Abre o cortejo “fúnebre”, a numerosa “Irmandade do S. Martinho”. Empunham archotes ( de jardim…) . A luz pública fora completamente apagada e é Lua Nova…

Momentos antes do "Enterro" Prepara-se a padiola e o "S. Martinho"

A chama dos 30 archotes é a única fonte de iluminação. Logo atrás da “Irmandade”, pelo meio da rua, deitado na padiola do costume, segue o suposto “cadáver” do S. Martinho – um boneco de palha trajando aperaltada fatiota por sobre um lustroso par de sapatos. Sugerindo um padre de arremedo, toma lugar central, na cena, o Carlos Sacristão. Amplia-lhe a voz, um micro ligado a uma aparelhagem mais ou menos dissimulada que a “organização” providenciou. E lá improvisa ele ao “Santo Martelo” -- como por vezes alcunha o S. Martinho, em homenagem ao saudoso "Velhão" – de umas vezes de forma mais perceptível outras nem tanto assim. Quando não dá para compreender, tira-se o sentido pelo vibrar do ambiente. Mais do que a letra, vale a música… E, por falar em música, este ano a “organização” esmerou-se e saiu, a acompanhar o cortejo, o famoso “Requiem” do Amadeu Mozart, também ampliado por aparelhagem de som. Portanto, alto nível “cultural” …

Um aspecto do "Enterro do S. Martinho"

Logo atrás da padiola e do “cadáver”, enfileiram as “viúvas” do S. Martinho. São muitas, e de todas as idades, estas “viúvas voluntárias”. Vêm em luto cerrado, despedir-se e carpir o dito cujo. Esta parte da cena é uma clara alegoria a varonis potencialidades (…) do “defunto”… Mas como gritam elas e durante todo o percurso ! Estão no Largo da Capela e ouvem-se no Cimo do Povo! Vêm no Cimo do Povo e já se ouvem no Rossio! Assim, conseguiram o maior “clímax” do Enterro. Falamos em termos de impacto cénico…

O cortejo faz várias paragens durante o percurso. Oportunidade para o Carlos Sacristão brilhar. Este ano, faltou o seu “velho” ajudante, o António Zangarilho. Fez falta, que o homem tem naturalmente piada. É um castiço, como se diz.

A "Irmandade de S. Martinho", 2004, no Cimo do Povo

Para aí hora e pouco depois de ter arrancado, o cortejo “fecha o ó” e chega de novo ao Largo do Rossio. Lá, no meio, está “plantado” um pau, ao alto. Pousa-se a padiola, junto. O Sacristão empolga-se ainda mais. O boneco, simbolizando o “cadáver” do S. Martinho, é pendurado nesse pau. As “viúvas” quase rebentam a garganta, e os tímpanos, com a berraria. É chegado o momento de pegar fogo ao boneco. Momento que nos atira para não sei quantas reminiscências. Os sacrifícios para apaziguar os deuses… a “purificação” pelo fogo… o preparar comida para a festança das colheitas… sei lá !

Um aspecto do "Enterro do S. Martinho"

Entretanto um elemento novo:- a presença e actuação do grupo “Animatolas” – artistas do fogo – que nesta altura ganham a boca de cena. Fazem malabrismos com maças incandescentes… com cordas a arder … Em apoteose, cospem grandes bolas de fogo ( bochecham parafina líquida…) sobre o boneco agora erguido e suspenso no pau. Sem remissão, pega-se-lhe o fogo e arde. Consome-se a fatiota, crepita já a palha das entranhas. A garotada arregala os olhos que nunca tinha visto “cuspidores” de fogo ao vivo! Esperemos que não tentem imitar a “brincadeira”… As “viúvas” esganiçam-se em chiadeira final. Dez minutos depois, desmorona-se o boneco pelo pau abaixo. Em breve só restam algumas chamas a acabar com os sapatos e a comer a base do pau, junto ao solo.

No final, a "Queima do (boneco) S. Martinho" Largo do Rossio

Estalejam foguetes. Sobe e despenha-se, lá do alto, algum fogo de artifício.

Enfim, cai o pano por sobre mais uma encenação trágico-brejeira-festiva do “Enterro do S. Martinho”, em Vila Franca da Beira. Tradição mais uma vez revisitada. Com agrado e descontracção gerais.

Ah ! Mas eis que um animado grupo de “resistentes” rodeia o pau (ainda) plantado no meio do Largo, onde continua a arder. Há mais castanhas, mais jeropiga, mais vinho…! Beberam durante o Magusto, beberam durante o cortejo, continuam a beber e a comer mais castanhas. Que grandes “destilarias” !

É a função social da bebida e da comida mesmo que com algum exagero…

E, lá no alto da abóbada celeste, brilham as estrelas ajudadas pela escuridão natural cá da Terra. Geométrico, (quase) eterno, destaca-se o “Sete Estrelo”. Cá em baixo, espantados os medos espanta-se o frio… Quem sabe, talvez os deuses antigos revigorem e dêem um salto lá acima. Ao encontro de Vénus… Em homenagem aos Homens, sobretudo aqueles que gostariam de subir com eles. Sim, até Vénus… para aquecer os corpos, e a noite !

Jano

Sem comentários: