18 de agosto de 2011

Passeata a Quatro Sentidos

PASSEATA A QUATRO SENTIDOS

(Passeata ao Luar - Vila Franca da Beira - 16 de Julho de 2011)

A caminhada era longa, longa de mais talvez, para umas pernas sexagenárias, já doridas, não habituadas a grandes esforços e assentes sobre tornozelos inchados.

No trajecto para o ponto de encontro ouvi vozes prudentes desaconselhar a minha participação. Quase voltei para casa, quase me resignei a passar um serão igual a tantos outros, como se tivesse de me esconder ou merecesse castigo por causa das minhas limitações. Quase. A renúncia era dolorosa. Lá se ia o contacto com a natureza que tanto aprecio, o movimento de que preciso, o convívio social que recreia o espírito! Ao contemplar tanta coisa que deixava fugir, uma parte de mim rebelou-se. Porque é que tudo há-de ser complicado comigo? Quem é que complica? Não! Perder, sem luta, aquela oportunidade que eu sabia não voltar a ter tão depressa, seria indigno de uma taurina que tem vivido a enfrentar desafios. Ora essa: Também sou um ser humano, também tenho direito a uns momentos de felicidade.

Quando cheguei disse ao meu primo que tinha medo de não aguentar, que só iria se tivesse transporte assegurado na hora da rendição. Não queria de modo algum ser um estorvo para os outros caminheiros.

“Que estorvo?””, replicou ele. “Agora vais. Vais a pé para lá, («lá», era a aldeia abandonada do Vieiro), e voltas de carro”.

Estava dito. Que força nos dá sentir que alguém acredita em nós! Obrigada, primo, pelo ânimo que me deste. Fizeste-me puxar pelos meus brios. A parceira que me arranjaste e eu fazíamos um par jeitoso, não fazíamos?
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Percebi que havia muita gente. 80 inscrições para a caminhada, informaram-me mais tarde. O luar, esse é que nos fez a desfeita de faltar. Caprichos lunares, paciência. Fomos com lanternas mesmo.

Pouco depois da partida passámos ao lado da minha casa. Mas nesse momento, desistir já estava fora de questão! 

“Vamos a passar na Madroa… No Valtinhoso”, iam dizendo os conhecedores daquelas pedras outrora palpitantes de seiva. Nomes que evocavam a minha infância, os donos que então cultivavam aquelas terras,… terras que nesse  instante deixaram de ser meros nomes sem vida, para se me revelarem no acidentado do terreno, no cheiro puro da noite estival que eu inspirava fundo e me deleitava a alma, no silêncio recatado da natureza adormecida, nos sons distantes de insectos notívagos que a quietude circundante nos deixava ouvir.

Aqui uma descida. “Cuidado! Ai que ainda vou parar ao carro dos bombeiros…”, pensei uma ou outra vez. E apoiava-me então  mais na bengala frágil. Verdade seja que levava a bengala por levar, como algo que faz parte de mim, sem pensar para que ela me serviria. Ali uma subida. “Ufa, isto cansa!”O meu rosto começava a ficar afogueado. Água! Se ao menos tivesse levado uma garrafita… E lembrar-me? A Cris! Que pena ela não estar ali para me avisar! De certa forma, aquilo também era uma aula de Educação Física. Bem puxada, por sinal.

De súbito ouvi o ronco de uma viatura próxima. Sobressaltei-me. Estava a ficar para trás! Na ânsia de sacudir o desconforto arranjei energia para dar uns passos de corrida. Depois, incitada pelo elogio rasgado de um
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observador, diverti-me a repetir a façanha de quando em vez, esquecida da sede e da idade. A minha parceira acompanhava e ria.

Mas ai! Um adversário sorrateiro, inesperado e impiedoso veio estragar-me a festa, mostrando-me implacavelmente que sempre tudo tem um fim: entraram-me grãos de terra nas sapatilhas duras. E  como me magoavam os pés! “Paramos para os tirar”, sugeriu a minha parceira, solidária.

Impossível. Iríamos atrasar-nos. Imaginei muita gente a olhar para mim com ar de enfado ou de comiseração. Que desagradável! A minha vitória era resistir até poder; queria ir até à meta traçada pelo meu primo, que diziam estar perto. Mas o perto fazia-se longe, infindavelmente longe para a resistência que me restava. As pernas fraquejavam, as faces ardiam.

Então, uma curta paragem na capela da Senhora das Necessidades a fim de juntar o grupo disperso ofereceu-se-me providencialmente como o momento certo de  reconhecer e aceitar os meus limites. A minha vitória era então desistir, saber sair de cena com dignidade. Continuasse quem pudesse. Eu não. Eu ia descansar para o automóvel, só uma leve tristeza por morrer quase na praia. Uma tristeza irracional, pois de facto tinha excedido as minhas próprias expectativas. Nem queria crer que tivesse andado quatro quilómetros.

No conforto do carro com o condutor e a esposa, que apesar de nos conhecermos  só nessa noite me receberam fraternalmente, julguei-me em total segurança. Por feliz coincidência, até uma garrafa de água lá tinham, metade da qual sorvi com avidez. Recostei-me. Dali em diante tudo rolaria sobre rodas, supus. Sobre rodas, sim; mas quanto a rolar… De solavanco
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em solavanco, desfazia-se nas respectivas sacudidelas  o meu doce e ledo engano. O veículo seguia penosamente aquele caminho humilhante de terra batida que nem o condutor conhecia.   Já cheirava a  queimado.   Depois  perdemo-nos. Estava iminente uma inversão de marcha, e a visibilidade era reduzida. A senhora teve de sair do carro para orientar a manobra. Comecei a recear secretamente que a brincadeira ainda acabasse mal., Felizmente tudo não passou de um breve susto.

Vieiro à vista. Respirei de alívio. Os caminheiros já lá estavam, em alegre convívio, degustando a merecida recompensa: frango de churrasco, chouriça assada, broa de milho, vinho e sumos.

Terminado o abastecimento, faltava atacar o regresso ao ponto de encontro inicial. O percurso escolhido era mais curto, contudo mais acidentado, ao que me dizem. A mim não me custou nada: tive enfim direito à a viagem tranquila por que ansiávamos.

Desta vez esperámos no Edifício da União Desportiva Vilafranquense pelos esforçados caminheiros. Apesar de a noite já ir longa e das horas em cima das pernas, ou talvez por isso mesmo, ainda sobrou a alguns deles vontade de comer queijo, requeijão ou bolo, regados com café ou chá. ainda houve energia para fazer o gosto à voz num coro improvisado que nem se saiu mal de todo, e até de dar um pé de dança para acabar em beleza. O único seriamente lesionado viria a ser o carro que me transportou. Ali sem se poder mexer, coxo de uma pata, fez-me lembrar um herói ferido mas feliz pela missão cumprida.
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O sino da torre da capela batia as três horas quando  entrei em casa. Para a minha história fica esta noite até agora única, marcada pela sensação revigorante de contentamento comigo mesma, e por três esfoladelas no tornozelo esquerdo que demoraram duas semanas a cicatrizar, mas que nem doeram realmente. Pois é. Quem corre por gosto, mesmo que se canse, não se queixa.

Texto da autoria de Ana Maria Almeida Fontes - 8/8/2011