15 de dezembro de 2014

Conto de Natal - Renato Nunes

Conto de Natal: “Família que reza mantém-se unida”
 
            Atravessavam-se quilómetros e aquele apelido, por si só, era chave infalível para entrar em qualquer cofre-forte: “– Sabe, venho da parte do sr. Forjaz”. E a casa escancarava-se mesmo à frente dos nossos olhos, sem qualquer pergunta adicional.

            A família Forjaz construíra um dos maiores impérios da nação, graças, em primeiro lugar, à compra e venda de habitações. Ao velho Forjaz costumavam, de resto, chamar o rei do imobiliário, o que curiosamente até rimava com milionário.

            Manuel Antunes de Pina Forjaz nascera em Vila Marim, no norte do país, no seio de uma família da astuta burguesia. Crescera numa velha casa de granito com vista para um penedo onde alguém um dia inscrevera uma frase, que sempre guardaria inconscientemente por dentro: “Família que reza mantém-se unida”. De resto, como não quisera queimar as pestanas com os livros, acabara por casar-se com uma dama da nobreza, por sinal bem mais velha, que, segundo acreditava, lhe poderia garantir o prestígio de um nome azul até ao fim dos dias.

            Logo após o matrimónio, partiram para a capital e, graças ao belo pé-de-meia que traziam escondido, conseguiram adquirir uns vastos quilómetros de terreno a escassos quarteirões do Tejo. Apenas dois anos volvidos, revenderam alguns lotes e ganharam o suficiente para adquirir três belas moradias na zona mais cara da cidade. A histórica Olisipo crescia então a olhos vistos e o cobiçoso Forjaz, cada vez mais raposo, não perdia a oportunidade de ceifar a seara.

            Passaram-se anos e anos, os suficientes para que a família Forjaz se tornasse sinónimo de sucesso em todo o país. Aos poucos, começaram a minar as mais variadas áreas: restauração, saúde, vestuário e, já numa fase mais recente, uma petrolífera – os reputados investidores diziam que o ouro negro era o único futuro do país e o cobiçoso Forjaz, cada vez mais lampeiro, em tudo o que via cheirava dinheiro.

            Todavia, sobretudo a partir de uma determinada fase da vida – talvez porque nunca tivessem filhos – os dias começaram a parecer-lhes insuportavelmente iguais. O casal Forjaz sentia a rotina a amargar-lhe na boca: acordar às 5h00 da madrugada, engolir o pequeno-almoço, separar tarefas (– tu vais à clínica!; – tu segues para os restaurantes…), atravessar a confusão dos carros parados nos semáforos, respirar o ruído do fumo a fugir dos escapes das chapas andantes que acabavam de arrancar. E no meio de tudo isso uma insuportável sensação de profundo vazio. Um vazio que, na verdade, contrastava com as inúmeras pessoas que diariamente recebiam no conforto das suas casas repletas de festas simuladas. Silêncio.

            Forjaz casara-se com pouco mais de 18 anos. Maria teria na casa dos 30. Durante todas as suas vidas, nunca haviam conhecido o sabor da fome, nem sequer algum dia haviam pensado em tal realidade. As suas habitações eram fartas e as mesas estavam sempre recheadas com tudo o que de melhor existia. Ainda assim, invadia-os a solidão, uma desgastante e insuportável solidão que a cada minuto os fazia perguntar o sentido da sua condição e, ao mais pequeno pretexto, os conduzia à discussão.

            Um dia, Maria aproximou-se do velho Forjaz e, estendendo-lhe delicadamente as mãos, mostrou-
 -lhe uma caixa de sapatos, cujo interior fora forrado com um pano de seda. Lá dentro, dormitavam dois gatinhos recém-nascidos, ainda com os olhinhos bem fechados. O velho Forjaz coçou a cabeça e sorriu longamente, parecendo assim aprovar a ideia da mulher para combater aquele vazio. De resto, gostou tanto que, logo no dia seguinte, foi ele próprio que repetiu a proeza e trouxe para casa dois cãezinhos que passaram a ser uma das poucas alegrias dos seus dias de milionário solitário.

            A chegada dos irrequietos bicharocos trouxe luz à escuridão do casal e a partir daquele momento os dias nunca mais foram os mesmos. O velho Forjaz via os tapetes roídos e as cadeiras arranhadas, mas perante o olhar complacente dos novos inquilinos nem sequer conseguia erguer a voz para proferir a mais breve reprimenda. Limitava-se a sorrir à esposa, que a todo o custo tentava esconder as asneiras dos bicharocos! Bastaram alguns dias e tornou-se evidente que a harmonia trouxera finalmente uma família à moradia. E pela primeira vez havia alegria.

            Passaram-se meia dúzia de anos e os animais cresceram alegremente na companhia uns dos outros. Nem os cães corriam atrás dos gatos, nem os felinos se intrometiam nos afazeres caninos. Quando muito, nos tempos mais recentes, lá vinha um miar mais assanhado ou um latido mais assustador sempre que a comida parecia não chegar para todos. A princípio, os quatro patas – amamentados no tempo das vacas gordas – começaram a estranhar a diminuição progressiva da ração, mas ao fim de algum tempo lá acabaram por convencer-se que tudo aquilo faria parte de uma dessas dietas malucas que a dona tantas vezes prescrevia a si mesma. Arre que era teimosa!

            Mesmo Fadista, o possante perdigueiro de orelhas caídas que mais se aproximara do coração do velho Forjaz, deixara de conseguir avançar o suficiente para sentir a mão no pêlo a afagar-lhe os sentidos. Aliás, ainda se lembrava muito bem quando, talvez há menos de duas semanas, tentara fazê-lo e tivera mesmo de fugir a sete pés, para não levar com o ferro da lareira em cima da cachimónia. Gerou-se então longa discussão entre a bicharada por muitas noites dentro.

            Um dia, porém, logo pela madrugada, chegou a ansiada explicação. Na mansão todos puderam ouvir que os Forjaz acabavam de decretar falência e em breve tudo seria entregue aos credores. Num ápice, as empresas foram seladas e quase de imediato vendidas em hasta pública, o mesmo sucedendo com o restante património ampliado ao longo de décadas e décadas de investimento e dura poupança.

            Então, o velho casal, já sem o prestígio que o dinheiro oferece ao nome de baptismo, foi forçado a deixar tudo para trás. Quanto aos animais que um dia haviam acolhido, não hesitaram em escorraçá-los imediatamente com sete pedras nas mãos. Pedrada após pedrada, os desorientados bicharocos ganiam dolorosamente e rodopiavam em volta da porta, nunca se afastando o suficiente para ficarem em segurança. Quando, por fim, as pedras deixaram de cair sentaram-se sobre as patinhas traseiras e aguardaram.

            Manuel e Maria abandonaram a mansão pela porta das traseiras numa manhã de Inverno. Mais sós do que nunca, arrastaram-se pelas ruas da cidade durante várias semanas. Sentiram frio, conheceram a fome, dormiram nas entradas dos edifícios que no passado haviam possuído e, ironia das ironias, acabaram a vasculhar a comida dos restaurantes onde ainda há pouco davam ordens. E enquanto percorriam as ruas em busca das portas abertas sentiam o desprezo das inúmeras visitas que durante anos e anos haviam diariamente recebido nos seus lares…

            Numa dessas intermináveis noites em que vagueavam pelas ruas abandonadas atracaram na velha mansão onde um dia haviam imperado. Repararam então que no interior da casa havia luzes, muitas luzes, e decidiram esperar atrás de um enorme arcipreste que crescera do outro lado da calçada. Estava escuro e, por certo, lá dentro, o jantar estaria prestes a terminar. – Talvez depois algum empregado venha despejar os restos das refeições no lixo... – matutaram para os seus botões. E esperaram, sempre escondidos.

            Estava frio, muito frio mesmo, e os trovões sulcavam assustadoramente os céus. Manuel abrigava a mulher debaixo da gabardina, apertando-a contra o peito quando, subitamente, o ansiado criado da mansão ultrapassou o secular portão de castanho. Viram-no debruçar-se e assobiar, durante alguns minutos. Logo depois, chegaram dois cães franzinos, com as caudas a abanar, fixando atentamente o homem da camisa branca que lhes estendia os restos da noite. O empregado aproximou-se e antes de partir afagou-lhes ternamente o cachaço, sem sequer ter tempo para ver os dois gatos que, entretanto, se haviam acercado da desejada comida.

            À distância, Manuel podia jurar conhecer aqueles animais de algum lado, mas a miopia cada vez mais acentuada imprimia uma perspetiva impressionista a todas as imagens que lhe chegavam à mente. Então, deixou o homem da camisa branca fechar completamente o portão e, depois de avançar alguns metros, quase sentiu um aperto no peito, quando identificou os bicharocos que ainda há tão pouco tempo havia escorraçado à pedrada. Percebia agora que eles sempre haviam permanecido por ali…

            Pressentindo-os avançar para a desejada comida, Manuel assobiou o mais alto que conseguiu, enquanto coxeava em direção ao centro dos acontecimentos, arrastando atrás de si a sua mulher, cada vez mais fraca e dorida pelo gelo da noite, pelo imenso poder da fome. Vazio.

            Ao assobio, os animais olharam em uníssono para o casal, completamente absortos da cabeça às patas, sem qualquer movimento, talvez estupefactos pela inesperada presença dos seus donos. Até que, sem que nada o fizesse prever, um a um, todos se desviaram da fumegante refeição, como que abrindo caminho aos estômagos vazios daqueles que ainda recentemente os haviam abandonado.

            Vendo aquela surpreendente prova de fidelidade e bondade, Manuel baixou ternamente a face e apertou a mão de Maria com mais força. Negociante de poucas palavras, sempre lhe haviam ensinado que um homem não chora, e por isso continuou a arrastar a mulher pela calçada fora. Depois, sempre juntos, sentaram-se lado a lado, recolheram a comida do chão e começaram a atirá-la, alternadamente, a cada um dos animais, também eles profundamente esfomeados. Já há vários dias que nenhum dava uso à dentuça.

            Nas ruas não havia ninguém. O frio descia silenciosamente das montanhas e atravessava cada ser até às mais profundas entranhas. Aninhados sobre a entrada da mansão onde um dia haviam crescido, os quatro patas envolviam-se num lânguido sussurro, rodeando ternamente os seus donos, com ou sem dinheiro, com ou sem roupas douradas ou insígnias imaginadas. Nem sr. Forjaz, nem sr. Manuel, nem conde, visconde, deão ou barão. Apenas e sempre os seus donos, finalmente de regresso. Nada mais.

            Ali mesmo, do outro lado dos seus antigos abrigos, não havia solidão. Afinal, também ali chegara, provavelmente, uma das maiores lições desta época: “Família que reza mantém-se unida” – e existem tantas formas diferentes de rezar…

            Naquele inesperado local, pela primeira vez na vida daquele casal foi Natal…

            [Natal,

            Ferida sem mal,

            Safanão de luz

            Que nos conduz

            A perceber

            Que apenas reencontramos

            O que somos

            Quando fugimos do artificial.

 

            Natal, cordão umbilical,

            Caminho que nunca se constrói sozinho;

            É preciso merecê-lo

            Para depois recebê-lo
            E não voltar a perdê-lo.]  

Renato Nunes           

16 de novembro de 2014

Entre a História e a vida - Renato Nunes



RENATO NUNES - Durante um período, mais ou menos regular, serão apresentados aqui, em www.vilafrancadabeira.net, “escritos” do Amigo Vilafranquense - Renato Nunes.

Entre a História e a vida


Historiadores e filósofos clássicos como Heródoto, Tucídides ou Cícero acreditaram que “a História é a mestra da vida”. Alguns autores mais recentes, no entanto, têm vindo a sustentar que a grande mestra da História (e da Humanidade) é a vida: enquanto esta nos grava na pele as duras aprendizagens adquiridas à custa dos nossos próprios erros, a primeira limita-se, em traços sumários, a mostrar-nos à distância alguns percursos trilhados pelos nossos antepassados. Trata-se de uma distinção que, embora simplista, talvez possa ajudar-nos a compreender a crónica dificuldade que sentimos em aprender com os erros dos outros…   
            Vem este arrazoado a propósito de uma reflexão que já algum tempo venho amadurecendo acerca das relações do Homem com a História, em particular nestes tempos tão estranhos que continuamos a viver. Estar atento aos sinais dos dias deveria ser uma tarefa de todos os cidadãos e, em particular, daqueles que consagram a vida ao estudo desta “narrativa científica”. Também por isso, não consigo aceitar (embora me pareça fácil explicar) o “enterrar da cabeça na areia” que para aí vai grassando, mesmo entre pessoas com responsabilidades histórico-culturais evidentes…   
             Por isso, no início deste terceiro parágrafo lanço um desafio ao leitor: perca algum do seu tempo a observar as emissões do “Canal História”. Aí, poderá deparar-se com várias “preciosidades esotéricas”, que podem passar pela procura de seres extra-terrestres nas mais surpreendentes construções feitas pelo Homem, no âmbito das várias civilizações, ou até mesmo, só para dar outros exemplos bizarros, pela busca de vampiros, monstros lendários ou deuses que se fizeram Homens… Podia, afinal, falar de um “Canal História” que, de um modo regular, parece querer falar de tudo, menos de História. Naturalmente que, se um canal que deveria ser de referência é assim, nem vale a pena explorar o que acontece no caso dos generalistas… big brother’s (ressalve-se aqui, apesar de tudo, o meritório esforço da RTP2 do ponto de vista cultural, pese embora a espada de Dâmocles – leia-se, privatização – que paira sobre a sua cabeça…).   
            Esta é, no entanto – como outros articulistas já denunciaram –, a ponta do icebergue de uma tendência mais vasta, que se reflecte, por exemplo, no modo como a História aparece representada nos escaparates das grandes superfícies comerciais, com títulos cada vez mais sensacionalistas e graficamente adornados, mas cujo conteúdo está, afinal, para a História como um camelo para o rio Mondego… Depois, quanto aos estudos sérios que ainda vão existindo (sim, porque neste país ainda se produz alguma investigação séria e rigorosa), quando conseguem ser editados, raramente chegam ao grande público por mais de uns fugazes instantes, logo desaparecendo (inexplicavelmente?) dos expositores.   
            Serão estas grandes transformações inconscientemente fabricadas pelos arautos do neo-liberalismo reinante neste novo século, quais usurários que há muito venderam a alma ao Diabo, em nome do seu único deus, o dinheiro? Tratar-se-á apenas de ignorância ou as razões serão mais obscuras? Existirá uma estratégia deliberada de reconverter os cidadãos em súbditos, o pensamento em obediência? Estaremos, afinal, a regressar paulatinamente, sub-repticiamente, a um Estado totalitário, que se intromete nos mais variados domínios da existência do indivíduo, regulando e vigiando obsessivamente tudo o que somos, passando até mesmo pelo número de animais que acolhemos dentro das casas onde vivemos? Aproveitar-se-ão os líderes do facto de as multidões preferirem ser conduzidas, em detrimento de tomar as rédeas do futuro nas próprias mãos? E poderão, efectivamente, tomá-las? O leitor saberá encontrar a sua resposta. Mas, por favor, reflicta. E ouse discordar das minhas respostas.   
            Respostas que, afinal, são cada vez mais difíceis de encontrar, sobretudo para aqueles que se sacrificaram ao longo de uma vida inteira ou para os jovens que desperdiçaram décadas a concluírem percursos académicos, muitas vezes com distinção, e depois são convidados a emigrar para o resto dos seus dias. Respostas que, de resto, não estão ao alcance dos comuns mortais e cujo sentido, por mais que os nossos manhosos líderes nos procurem inculcar, deixam sempre qualquer ser pensante com a pulga atrás da orelha. Afinal, como recentemente me escrevia um amigo, este país já não é para jovens, nem para idosos e, naturalmente, ainda menos para crianças. Este país é para as pedras e, claro, para os arrivistas, os burocratas mangas-de-alpaca, os corruptos, os farsantes, tantos engenheiros ou doutores “à la burla”, que depois até lançam livros onde se apresentam como vítimas de um sistema que ainda há bem pouco tempo ajudaram habilmente a forjar…    
             Atravessamos um período de indefinição, laxismo, niilismo, anomia e, sobretudo, de total impunidade em relação aos protegidos dos vários reis que para aí existem. Efectivamente, pensando bem, Portugal abandonou a Monarquia em 1910, mas nunca deixou de ser um conjunto de pequenos reinos, governados por vários caciques, cuja utilidade é tantas vezes justificada com o pretexto de um carimbo ou uma simples rubrica. Olhamos à nossa volta e vemos polícias condenados à prisão por terem colocado a vida em risco, perseguindo criminosos; pais com medo de imporem regras aos filhos, pela pressão social de algumas correntes psico-pedagógicas que transformam as crianças em deuses que não podem ouvir um não ou sentir o traumatismo da frustração e muito menos de um berro; professores ameaçados, agredidos, publicamente humilhados e, agora, forçados a fazer provas cujo principal objectivo, além de representar um belo encaixe financeiro para os cofres do Estado, passa por escamotear os dramáticos números do desemprego. Afinal, deixarão de existir docentes desempregados, cinicamente reconvertidos em candidatos a professores que não conseguiram obter aprovação na tal prova generalista já do dia 18 de Dezembro, onde serão testadas as competências esotéricas que para aí grassam… A verdade é que a qualidade do sistema não constitui o grande objectivo deste tipo de medidas com carácter eliminatório que, de resto, me fazem lembrar um pouco a trágica anedota do paciente que se dirige repetidamente ao médico, queixando-se de dores no peito e o clínico limita-se a mandar-lhe repetir exames atrás de exames, até que o desgraçado lá acaba por morrer e, desse modo, contribui para a redução estatística do número de doentes. Não é, afinal, o que tem sucedido em Portugal ao longo dos últimos anos com esta obsessiva ideia de que tudo se resolve com mais exames, em detrimento de atacar as verdadeiras causas? A este ritmo, não tardará que deixem de existir desempregados, pobres, deficientes ou quaisquer outro tipo de calamidades e então o reino dos céus terá, finalmente, chegado a este cantinho do Mundo… Hoje, no meio de tanta miséria e de tanto cinismo, os acenos que o poder nos faz são cada vez mais apetecíveis. Depois, resistir-lhes implica uma integridade, que, reconheço, nem sempre se coaduna com a necessidade de sobrevivência.   
            As linhas traçadas para o futuro deste país, nomeadamente ao nível da Educação, são simplesmente desastrosas. Veja-se, por exemplo, a preconizada privatização das Escolas (ninguém se iluda: é o que está realmente a acontecer), que significará “apenas” a destruição de um dos mais poderosos meios de mobilidade social ascendente construído neste país no pós-25 de Abril e que permitiu a vários jovens (entre os quais me incluo) continuar a estudar e ensaiar construir um futuro diferente das raízes onde nasceu. Com todas estas medidas, no mundo dos privados, as elites poderão continuar a perpetuar-se (dinheiro gera dinheiro, poder gera poder) e os desgraçados do berço poderão igualmente perpetuar-se… na miséria. Estamos, afinal, perante um profundo retrocesso civilizacional.   
            Os arautos que nos desgovernam parecem efectivamente acreditar no efeito Mateus: “Porque ao que tem, dar-se-á e terá em abundância; mas ao que não tem, ser-lhe-á tirado até mesmo o que tem”. Será que é apenas porque nunca conheceram o amargo de não ter? A verdade é que – perdoem-me o desabafo – ninguém deveria governar os outros sem conhecer o sabor da fome, sem sentir na pele a verdadeira dimensão da realidade.   
            Neste último parágrafo, debruçado entre a vida e a História, opto pelas pontes que unam as duas construtoras da memória e, consequentemente, de tudo o que somos. Recordando o meu próprio percurso pessoal e daqueles que me são mais próximos, regresso à História-ciência e História-docência a que um dia pensei, ingenuamente, poder consagrar a vida, em regime de exclusividade. Regresso a todos os gigantes que continuam a transportar-nos aos ombros. Regresso a esses gigantes, a tantos heróis do silêncio do anonimato, que merecem, pelo menos, a nossa indignação. E deles recupero uma lição que a História parece querer gritar-me – se a indiferença vencer, o século XXI não será muito diferente do século que o antecedeu: 1914-1918 – I Guerra Mundial; 1939-1945 – II Guerra Mundial, Holocausto… Será mesmo necessário continuar a escrever, sabendo que apenas este último conflito terá provocado mais de 50 milhões de mortos e a banalização do genocídio? Até quando a História e a vida caminharão de costas voltadas dentro de cada um de nós?    
Renato Nunes


17 de outubro de 2014

Os compromissos impossíveis (ou infrutíferos…) - Renato Nunes

RENATO NUNES - Durante um período, mais ou menos regular, serão apresentados aqui, em www.vilafrancadabeira.net, “escritos” do Amigo Vilafranquense - Renato Nunes.

  
Os compromissos impossíveis (ou infrutíferos…) 


Numa entrevista a Igrejas Caeiro, em 1958, o historiador Jaime Cortesão disse: “Eu penso também que toda a História tem um carácter contemporâneo. Nós estudamos a História como quem procura responder a questões do nosso tempo” (Alfredo Ribeiro dos Santos – Jaime Cortesão UM DOS GRANDES DE PORTUGAL, 1993, p. 343).

            Talvez resida aqui a génese do meu progressivo interesse pelas primeiras décadas do século XX. De facto, é difícil não encontrar aspectos análogos entre as duas primeiras décadas do século transacto, em Portugal – e, de um modo mais vasto, em toda a Europa – e a situação de clara indefinição política que vivemos na actualidade. No passado, o descrédito dos actores políticos conduziu muitas pessoas, entre as quais se contaram inúmeros intelectuais, a acreditar que a ditadura era o único caminho possível para a salvação do país. O próprio António Sérgio, intelectual que evoluiu para concepções socialistas democráticas e participou nos movimentos oposicionistas ao Estado Novo, que se definia como “apartidário”, escreveu, numa carta datada de 3 de Dezembro de 1912, a Raul Proença: “Sem tirania governa-se e deve-se governar num país educado, constituído, organizado; mas temo bem que sem tirania não será possível meter na organização um país em que o governo, as classes dirigentes são uma súcia de bandidos, charlatães e parasitas, como entre nós. Eu peço a tirania, não a tirania de um, mas uma tirania trocada entre miúdos. Em cada repartição, em cada escola, em cada quartel, em cada instituto, um pequeno tirano cheio de boa vontade e de saber concreto, capaz de resistir à força acumulada e asfixiante da imoralidade hereditária, que já deixou mesmo de ser imoral, de tal maneira entrou nos costumes” (António Sérgio – CORRESPONDÊNCIA PARA RAUL PROENÇA, 1987, p. 40).

            E numa carta datada de 1923, prosseguiu o mesmo ensaísta: “Os políticos procedem como se graves perigos nos não ameaçassem a todos”. (obra citada, 1987, p. 166).

            Noventa anos depois desta última carta, quantos portugueses não se poderão, afinal, rever nas palavras do ensaísta/historiador? Que outra caracterização se poderá atribuir ao modo como o nosso Primeiro-Ministro tratou o seu parceiro de coligação do CDS/PP, ao longo de vários meses, ou a “criancice” que Paulo Portas, já amuado, utilizou para chamar a atenção? Cento e um anos depois da primeira carta, quantos portugueses não acreditarão que, efectivamente, a única solução passa pela ditadura? Pois bem, pese embora toda a desilusão que o actual sistema político continua a merecer-me – já lá irei – continuo a não acreditar em tiranias ou em tiranos, ainda que amplamente anunciados como temporários ou transitórios, simples intermediários para depois chegar à “idade do ouro”, como, de resto, a própria Manuela Ferreira Leite parece já ter defendido quando falou em “suspensão da democracia”.

            Dito isto, nada me inibe, também, de escrever que não confio num entendimento a três partidos, que o ressabiado senhor Presidente da República parece ter sonhado numa noite mal dormida. Quem quiser acreditar que o “Governo de Salvação Nacional”, caso consiga, efectivamente, formar-se (para além de um ineficaz plano de generalidades…), é capaz de regenerar o sistema político em que nos movemos; quem quiser – repito –, que acredite. A mim, que me perdoem, mas esta ideia de um “milagre” não me convence, embora fique feliz, caso a História venha a comprovar que estou errado.

            Se Cavaco Silva conhecesse esta afirmação de António Sérgio, que a seguir reproduzo, talvez pensasse duas vezes antes de avançar para a solução que anunciou: “As melhores reformas são aquelas de que os legisladores não têm conhecimento, as que passam desapercebidas na Imprensa Nacional. Uma reforma de organização nunca reforma cousa alguma, e introduz confusão e indecisão nos serviços até que a nova organização se torna habitual. Sou sempre portanto por que se mantenham as formas o mais possível” (obra citada, 1987, p. 41). A educação e a cultura não são, portanto, um bem supérfluo, mas uma necessidade. 

            É, de resto, extraordinário que numa época em que se defenda, às vezes até à exaustão, a descentralização, se tenha recentemente interferido com uma das vias que ainda podem ajudar-nos a perseguir o caminho do desenvolvimento: as freguesias. O já decretado fim de várias freguesias, concebido de régua e esquadro a partir dos gabinetes ministeriais, sem tomar em conta as necessárias especificidades, não representa apenas uma poderosa machadada no poder local ou nas legítimas e históricas pretensões autonómicas das populações, mas, segundo creio, um rude golpe num dos caminhos que nos permitiria apostar no crescimento. Bastará, de resto, comparar a evolução de algumas das mais recentes freguesias para perceber, a olho nu, as diferenças entre o antes e o depois, por vezes até mesmo sem o auxílio dos fundos estruturais europeus… e, já agora, que daqui a alguns anos se volte a fazer o mesmo exercício nas freguesias agora extintas…

            Sem cair nas ilusões do regionalismo, a verdade é que seria fundamental que o poder central passasse a olhar o poder local de outro modo, muito especialmente no que diz respeito ao extraordinário poder de influência das Juntas de Freguesia na própria vida das populações e na gestão das melhores soluções para o seu desenvolvimento. Bastará, de resto, pensar que, prestes a chegar ao mês de Agosto, continuamos a assistir aos malogrados incêndios, que todos os anos consomem uma das maiores riquezas naturais que possuímos, e continuamos, impávidos e serenos, com um número significativo de beneficiários de vários subsídios a fazer, rigorosamente nada. Pura e simplesmente, desprezamos o precioso conhecimento que as Juntas possuem destas e de outras matérias…

            É certo que a mediocridade e a corrupção também chegam ao nível dos autarcas concelhios e dos presidentes das Juntas. É igualmente evidente que nos faltam estadistas, capazes de, numa lógica de médio e longo prazo, pensarem em estratégias eficazes para revitalizar, sobretudo, os concelhos do interior do país, operacionalizar políticas de desenvolvimento local e, por exemplo, estancar o êxodo rural, promovendo políticas de incentivo à fixação das pessoas e à própria natalidade. É certo que continuamos a navegar à cabotagem, pensando apenas no dia de hoje, mas, com todos os vícios que o poder local possa, efectivamente, enfermar, é com ele que devemos contar. É fundamental investir seriamente na formação das pessoas que estão à frente do poder local, pois elas representam a linha da frente de todos os combates, e, segundo creio, é com elas que, verdadeiramente, ainda poderemos contar para melhorar a situação do país. 

            Enquanto cidadãos, que ousam pensar pela própria cabeça e não devem hesitar em apontar o dedo aos (evidentes) erros dos muitos mercantilistas que nos têm governado, a verdade é que também chegou a altura de percebermos, enquanto simples cidadãos, que todo este sistema é insustentável tal e qual como está estruturado. O “Estado Providência”, uma das grandes conquistas do século XX, deve ser colocado à disposição daqueles que, efectivamente, necessitam e não sob o interesse de corporações ou interesses partidários. Doa a quem doer, esta mentalidade que, inacreditavelmente, ainda vai existindo mesmo entre os mais jovens (“O Estado tem de aguentar, sempre aguentou”), esta “filosofia de vida” é, quanto a mim, insustentável. Apoiar quem verdadeiramente necessita, sim; alimentar a ideia de que não é necessário trabalhar, sustentar o parasitismo, não. Até porque, não o esqueçamos, neste momento, enquanto país, dependemos do dinheiro dos outros para continuar a funcionar. 

            Sem procurar aqui escamotear os problemas intrínsecos a várias autarquias (endividamento imparável, elevado número de funcionários públicos recompensados pelos partidos, ao longo de décadas, com um lugarzinho ao sol…), a verdade é que, segundo creio, uma efectiva visão estratégica, a médio e longo prazo, para o país poderia começar pelo poder local. Seria um dos passos para privilegiar a economia, em detrimentos das finanças o que equivale a dizer, pensar para além de hoje… 

            O país ganharia, aliás, se Cavaco Silva (um dos responsáveis pela destruição da nossa agricultura e das pescas…) tivesse nomeado ele mesmo um governo de transição, indo, por exemplo, buscar os seus membros a todos os partidos – de um modo proporcional aos resultados obtidos nas últimas eleições –, mas baseando a sua escolha no mérito, no curriculum, no percurso de uma vida (que não tem de passar, necessariamente, pela Universidade) e não no sistema de compadrio que para aí grassa. Bem sei que muitos me dirão que todos os partidos estão “minados”, mas, goste-se ou não, eles são imprescindíveis numa democracia. Todas as opções que consigo, de resto, imaginar – incluindo aceitar a proposta de remodelação apresentada por Passos Coelho – me parecem, por conseguinte, mais acertadas do que esta infeliz proposta de um “casamento a três”, que mais não faz, afinal, do que prolongar a incerteza em que vivemos…

            Face à importância do poder local, seria importante encetar, de imediato, um contacto mais estreito com as autarquias e as freguesias de todo o país. Ouvir as populações, sentir os seus problemas, pressentir os obstáculos ao seu desenvolvimento e daí tirar conclusões que se vertessem em medidas concretas… Com todos os defeitos que esta proposta possa envolver, estou certo que seria, pelo menos, bem mais vantajosa para o país do que uma visita às ilhas Selvagens, onde, neste momento, por certo, Cavaco Silva deverá andar, absorto no mundo imaginário em que vive, a ouvir o som das cagarras...

            A questão da credibilidade do regime político e dos seus principais actores pode ser associada à grave crise económica e financeira em que vivemos. Faltam-nos, eu diria que quase sempre nos faltaram, ao longo da História, políticos competentes e acima de tudo bem-intencionados. Neste momento e cada vez mais, a honestidade, o “dar o exemplo”, funcionariam como factores decisivos de credibilização daqueles que nos conduzem.   

            Ademais, a curto prazo, a política tem de abrir-se, forçosamente, aos cidadãos que não se encontram vinculados partidariamente, pois este modelo de arregimentar os boys para os partidos (que chegam depois, rotativamente, ao poder) está profundamente esgotado. É, de resto, inconcebível – pese embora todos os perigos que daí possam resultar – que um simples cidadão não possa apresentar a sua candidatura a Primeiro-
 -Ministro, sem ter o trampolim dos partidos a catapultá-lo. Ademais, segundo creio, seria importante reformular o próprio modo de funcionamento da Assembleia da República, mas isso justificaria, por si só, um novo artigo, pelo menos…

            Se António Sérgio nos dizia que “uma reforma de organização nunca reforma cousa alguma”, também é certo que a História nos ensina que sempre que o Homem sonhou destruir tudo e começar a reedificar a partir do zero o resultado final foi catastrófico. Esse extremismo foi, de resto, um dos motivos que esteve na origem da perseguição movida aos Judeus ou, apenas a título de exemplo, aos que ousaram pensar pela sua própria cabeça. Vivemos num tempo em que o cata-vento do nosso destino pode, a qualquer momento, virar-se para qualquer lado, um pouco à semelhança do que ocorreu nas primeiras décadas do século XX. Ontem, como hoje, os ventos do extremismo são fortes e, brevemente, tenderão a tornar-se ainda mais poderosos, com o inevitável aumento do desemprego, dos problemas sociais e do aparecimento de novos Messias portadores da Boa Nova, mas a decisão de escolher é apenas nossa… Enquanto a tivermos, não a desperdicemos.

            Na altura das grandes decisões, o conhecimento da História fará toda a diferença. A educação, obtida com rigor, método e trabalho, fará, cada vez mais, toda a diferença… Dessa diferença resultará, afinal, o país que queremos legar aos nossos filhos.
 
            Renato Nunes

14 de setembro de 2014

Renato Nunes - " I Guerra Mundial: a indústria da morte”



RENATO NUNES - Durante um período, mais ou menos regular, serão apresentados aqui, em www.vilafrancadabeira.net, “escritos” do Amigo Vilafranquense - Renato Nunes.
 
Esta primeira divulgação, intitulada “ I Guerra Mundial: a indústria da morte”, retrata alguns episódios com algumas pessoas de Vila Franca. Este tema, também foi dissertado, nas últimas "Férias com Cultura", realizadas em Vila Franca, em Agosto último. Se estiver interessado, em comentar os textos, poderá fazê-lo, em “Comentários”.
 
 

Há 100 anos atrás, o mundo estava em guerra. O primeiro conflito à escala planetária (1914-1918) constitui um dos marcos mais importantes da História Contemporânea, pois o seu desenrolar originou um conjunto de profundas transformações. A partir desse momento, o mundo nunca mais seria igual: nascia uma nova era, que colocava fim à “idade dourada da segurança” (Stefan Zweig); nascia a indústria da morte, que se aperfeiçoa cirurgicamente até aos dias de hoje…

            A assinatura do armistício, a 11 de Novembro de 1918, em Rethondes (França), deixava para trás cerca de 10 milhões de cadáveres, mais de 25 milhões de mutilados, uma Europa praticamente destruída e progressivamente dominada pela inflação galopante/desemprego, impérios desfragmentados e, por exemplo, uma nova configuração geo-política internacional, com os EUA a assumirem o papel de principal potência mundial e a Rússia, já sob o domínio de Lenine (após a revolução socialista soviética de 1917), a atrair a curiosidade (e o receio…) do mundo. Alguns historiadores consideram mesmo que o início do século XX pode ser associado, numa perspectiva mais abrangente, à I Guerra e, segundo creio, o mundo dos nossos dias nasceu naquela época, sendo que pouco do que aconteceu a seguir (desde logo, a ascensão dos regimes totalitários e a II Guerra Mundial) pode ser compreendido sem a sua existência.

            Ora, conversando recentemente com algumas pessoas mais idosas da minha aldeia, fiquei surpreendido com as prolíficas memórias familiares que ainda existem sobre este conflito, à primeira vista tão longínquo no tempo: afinal, à escala humana, um século parece por vezes uma eternidade! Pena é que esta “consciência histórica” não possa estender-se aos mais jovens…

            A I Guerra Mundial intersectou, de um modo bastante vincado, a História das famílias com a História da própria Humanidade. Daí que nas gavetas de muitos portugueses anónimos continuem escondidos vários tesouros. Em certo sentido, podemos dizer que esses esqueletos escondidos são cicatrizes que nunca se fecharam; portas das quais nunca se regressa incólume…

            Ao procurar identificar o nome de um combatente da aldeia onde cresci, morto na frente europeia, em 1918, fui surpreendido com a existência de, pelo menos, mais oito expedicionários, onde se contava uma outra vítima mortal da guerra. Uma fugaz passagem pelo Centro Social e Paroquial (Lar de Idosos) mais próximo ajudou-me rapidamente a depreender que um eventual alargamento do estudo desta temática a todo o concelho (Oliveira do Hospital) faria, por certo, disparar os números e desenterrar outros tesouros.

            Por agora, entre os cofres abertos, não posso deixar de partilhar aqui alguns dos dados que tive oportunidade de compulsar numa caderneta militar de um conterrâneo meu, documento esse que apresenta um invulgar estado de conservação, pese embora o facto de ter mais de um século! As suas capas pretas impecavelmente alinhadas, sem qualquer vinco no tecido, cumprem rigorosamente uma das indicações constantes logo na página inicial: “Não é permitido dobrar a caderneta”.

            A cédula militar em causa pertenceu a Alípio Esteves Borges (“Monteiro”), soldado n.º 2909, residente em Vila Franca (à época, do Ervedal), nascido em Novembro de 1893. O recrutado assentou praça quando tinha 19 anos (30 de Julho de 1913), para servir até aos 45 anos de idade, a cargo do distrito de Coimbra, no regimento de Infantaria.

            Aquando da recruta, o jovem agricultor saberia ler, escrever e contar, parecendo poder depreender-se da sua cédula militar que teria concluído a 3.ª classe. Retenha-se que, em 1910, a taxa nacional de analfabetismo rondaria os 75%, flagelo que haveria, em traços gerais, de perpetuar-se pelo tempo fora, pese embora o esforço feito pela jovem República no sentido de combater este problema (preocupação, de resto, fulcral para compreender a inauguração da Escola Primária de Vila Franca, ainda no antigo largo do Cruzeiro, por volta de 1911, no lugar anteriormente ocupado pela Capela de Santa Margarida – cf.
“Monografia” escrita por José Marques Lopes: http://vilafrancadabeiranoticias.blogspot.pt/).

            Finalizada a instrução de recruta, em 30 de Abril de 1914, Alípio Borges foi integrado no Corpo Expedicionário Português (CEP) e embarcou para França, em 23 de Fevereiro de 1917, de onde apenas regressou, a título definitivo, em 23 de Julho de 1918. Mais tarde, acabaria por beneficiar de uma parca pensão e receberia uma medalha comemorativa dos combates travados pelo exército português, com a legenda “França 1917-1918”.

            Esteve, portanto, na frente de batalha europeia cerca de um ano e cinco meses, o que, de per si, nos permite imaginar algumas das dificuldades que, por certo, terá experimentado, nomeadamente durante a desgastante fase das trincheiras (v.g., no Inverno de 1917/1918, as temperaturas desceram aos 30 graus negativos, que congelavam a água existente nos motores; segundo Isabel Pestana Marques, os expedicionários portugueses chegaram a estar mais de um ano na linha da frente, ao contrário dos ingleses que eram rendidos trimestralmente)… Memórias que, por certo, terão acompanhado Alípio Borges até à morte, em 1972, e que, talvez, tenham sido reavivadas quando, no dia 1 de Janeiro de 1961, com 67 anos, voltou a ser obrigado a “apresentar-se” em Oliveira do Hospital, por certo no contexto do início da Guerra do Ultramar.

            Importará dizer que o primeiro contingente de tropas do CEP destinado à guerra na Europa embarcou em Lisboa, no final de Janeiro de 1917 (para África, os primeiros portugueses partiram logo em 1914). Após a instrução prévia, os expedicionários eram concentrados em Tancos (Vila Nova da Barquinha, Santarém), onde recebiam um treino mais intensivo, mas, sabemos hoje, profundamente desajustado à nova realidade bélica mundial, dada a proeminência da guerra química (veja-se o caso do gás mostarda), do poder da artilharia (a metralhadora pesada inglesa Vickers de 7,7 mm poderia disparar cerca de 600 projécteis por minuto), dos tanques, dos lança-chamas, do impacto da aviação militar e dos submarinos, entre outros recursos tecnológicos dramaticamente mortíferos e causadores de doenças até então desconhecidas, nomeadamente do ponto de vista mental (neurose de guerra).

            Aplicado o propalado “milagre de Tancos”, os expedicionários rumavam de comboio para Santa Apolónia, daí marchavam para Alcântara e, de barco, seguiam para o porto de Brest (França) e, finalmente, para a linha da frente (no total, seriam 55 mil portugueses a chegar à Flandres). Esse trajecto final até ao Norte da França seria, de resto, marcado pelas constantes paragens em várias estações, como nos recorda Isabel Pestana Marques, na sua incontornável obra Das Trincheiras, com saudade, na qual a historiadora partilha as conclusões extraídas ao longo de 18 anos de investigação.

            Escreveu Jay Winter que cerca de metade dos homens que morreram na I Guerra não têm túmulo conhecido. Numa iniciativa a todos os títulos meritória, o jornal Público tem vindo a editar diariamente uma série de suplementos sobre o conflito, procurando, assim, reerguer do esquecimento os combatentes nacionais, ainda hoje, repita-se, muitas vezes sepultados no vazio do anonimato, como acontece em África (Público, I Grande Guerra, n.º 4, 31 de Julho de 2014).

            No cemitério da minha aldeia nativa, o tempo tem-se encarregado de fazer desaparecer das lápides os nomes destes meus conterrâneos “serranos” que, no início do século passado, foram mobilizados pela jovem I República para combaterem em terras estrangeiras, por uma causa (mormente, no que se refere à Europa – principal palco do conflito) que pouco ou nada lhes diria, além da iminente certeza de uma morte anunciada pelos obuses e, tantas vezes, vislumbrada nos cadáveres, com os quais coabitavam nas trincheiras, já para não falar nas pulgas, piolhos, larvas, ratos, lama… Homens que, muitas vezes, mal conheciam os limites do concelho onde haviam nascido e que percepcionavam Lisboa como o outro lado do mundo…

            A I Guerra Mundial teve um impacto decisivo do ponto de vista político (contribuindo para o agudizar da crise da I República), mas os seus efeitos fizeram-se sentir igualmente no quotidiano das populações, nesse Portugal profundo, vincadamente rural, analfabeto, periférico e ainda bastante marcado pela matriz católica, pese embora o esforço de laicização empreendido pela jovem República, vertido na polémica Lei da separação das Igrejas do Estado, promulgada, em 1911, pelo Governo Provisório saído da revolução de 5 de Outubro de 1910.

            1917 e os anos seguintes ficaram marcados por sucessivos relatos de “aparições” que eclodiram por todo o país, sendo o mais paradigmático o fenómeno das alegadas “aparições” da Virgem Maria aos três pastorinhos (Francisco, Jacinta e Marta), na Cova da Iria (Fátima). Sintomaticamente, na memória de muitos habitantes de Vila Franca da Beira ainda paira a imagem das mães que rumavam diariamente ao santuário da Santa Margarida, para pedir o regresso, breve e saudável, dos seus filhos. Parece, pois, verificar-se um revivalismo do culto religioso, nesta época de fome, guerra e peste (Geoffrey Blainey refere mesmo que, durante a guerra, por cada soldado morto por balas, granadas ou explosivos um morria de doença e, além disso, segundo aquele historiador australiano, a gripe “espanhola”, surgida na ressaca do conflito, matou ainda mais pessoas do que a I Guerra).

            Procurando não cair na tendência de fazer hagiografia, importa hoje, cada vez mais, recordar estes homens esquecidos na voragem dos tempos. De Vila Franca da Beira, eis a lista, naturalmente provisória (com as naturais imperfeições daí decorrentes), daqueles que terão participado no primeiro conflito à escala planetária (um trabalho apenas possível em grande parte graças à preciosa memória das gentes que me viram crescer): Celestino Pais, Alípio Esteves Borges, Aires Lopes Figueiredo, Eduardo Borges de Campos, Gabriel Tavares Gonçalves, Sebastião Esteves Simões, Carlos Fernandes Lopes, Sebastião e Abel, sendo que os dois últimos (cujos apelidos terão ainda de ser confirmados) estão incluídos entre os cerca de 8 mil portugueses que perderam a vida na Flandres e em África.

            Segundo creio, valeria a pena alargar a lista a todo o concelho, pelo que deixo aqui o repto ao leitor, que ainda conserva algum tipo de memória sobre este assunto, para que a inscreva no espaço consagrado aos comentários, que, felizmente, as novas tecnologias nos permitem utilizar e que poderiam trazer inequívocas vantagens para todos, caso fossem utilizadas de um modo mais eficiente e, digamos, menos maledicente... 

            Na sua obra Uma breve história do século XX, Geoffrey Blainey conclui que, Albert Einstein, inadvertidamente, “ao pregar uma versão de pacifismo numa altura inapropriada”, contribuiu, dada a sua influência, “para enfraquecer alguns dos entraves colocados à subida de Hitler ao poder”. Nestes novos tempos, em que a guerra parece ter entrado numa nova era (desde logo, com os drones e os conflitos localizados caracterizados por um poder de destruição total), importa não descurar a vigília. Afinal, uma nova guerra mundial poderá estar mesmo ao dobrar da esquina e a verdade é que ninguém poderá partir para um novo conflito com as ilusões que muitos experimentaram, aquando da declaração de guerra da Inglaterra e França à Alemanha e ao império Austro-Húngaro (Agosto de 1914), pois a indústria da morte tem as chamas mais vivas do que nunca…

            Conhecer a guerra através das pessoas de carne e osso que a viveram e que, afinal, são os nossos familiares directos ajudar-nos-á, por certo, a perceber que, por trás da banalidade com que assistimos, durante o almoço, a uma guerra do outro lado do mundo, existem dimensões da vida que nenhuma palavra poderá descrever. Afinal, o sofrimento e o drama nunca têm limites. Quando os estudamos é que compreendemos que nenhuma guerra acaba com as guerras. Quando os vivemos é que realmente sentimos…

            Termino com Marc Ferro, que, no livro A grande guerra 1914-1918, cita as dramáticas palavras escritas pelo combatente Raymond Naegelen, a propósito da vida infernal nas trincheiras. No ano em que se completam 100 anos após o início da I Guerra e parece proliferar a tendência para derrubar ainda mais as pontes entre as Nações (crescente isolamento proteccionista…), vale a pena pensar nelas:

            “Sobre toda a frente do cabeço de Souain, desde Setembro de 1915, os soldados de infantaria ceifados pelas metralhadoras jazem estendidos de barriga para baixo, alinhados como num exercício.

            A chuva cai sobre eles, inexorável, e as balas partem os seus ossos embranquecidos.

            Uma noite, Jacques, durante uma patrulha, viu sob os seus capotes descoloridos ratazanas a fugir, ratazanas enormes, engordadas a carne humana. Com o coração a bater, ele rastejava em direcção a um morto. O capacete tinha caído. O homem apresentava a cabeça contorcida, vazia de carne: o crânio à vista, as órbitas vazias, os olhos comidos. A dentadura tinha deslizado sobre a camisa podre e da boca escancarada saltou um bicho imundo”…

Renato Nunes (renato80rd8918@gmail.com)


23 de julho de 2014

Confraria do Torresmo Beirão - Entronização de Confrades - 21.06.2014


Consolidando a vontade de um grupo de amigos Vilafranquenses, residentes e não residentes, realizou-se nesta data – 21 de Junho de 2014 – a primeira entronização (Confrades fundadores) da novel Confraria do Torresmo Beirão. Alguns confrades deste grupo não estiveram presentes por razões pessoais atendíveis, pelo que serão entronizados numa próxima data.
 
A afinidade gastronómica deste grupo de amigos traduziu-se na criação da Confraria, acto que teve lugar no dia 15 de Junho de 2o12, tendo em vista a divulgação, e a preservação da qualidade que faz jus ao tão apreciado manjar, conhecido por “torresmo beirão”.
 
Esta iguaria, confeccionada por gente que se aprimora na escolha dos produtos e dos temperos (onde se destaca o extraordinário vinho da região), que utiliza recipientes que vêm de longa data (como as tradicionais caçoilas de barro preto), tem cheiro e tem sabor que consolam até à alma.
 
O evento, realizado na Sede da União Desportiva e Tuna VilaFranquense, teve como "Mestre de Cerimónia" a Srª Dra Graça, Vereadora da Cultura da C.M.O.H., que amavelmente se disponibilizou para a sua organização e apresentação.
 
Foi dada a palavra ao Sr Presidente da Câmara de Oliveira do Hospital, Dr José Carlos Alexandrino, que abriu a sessão com os cumprimentos aos representantes das Confrarias convidadas e demais presentes, elogiando a criação desta nova Confraria, que vem contribuir para o enriquecimento cultural, nomeadamente na componente gastronómica, e também para a visibilidade do próprio Concelho, onde já existem outras duas Confrarias no mesmo âmbito.
 
Foi constituída uma mesa com a presença do Juiz, do Mordomo-mor, do Mordomo-ecónomo e do representante da Confraria Madrinha.
 
Tomaram a palavra o Juiz e o Mordomo-Mor da nova Confraria e também o Vice-Presidente da Federação das Confrarias.
 
Foi feita a proclamação da carta de Deveres dos Confrades, seguida do respectivo juramento conjunto, no qual participou o Chanceler da Confraria Madrinha, a Confraria do Queijo da Serra.
 
Em seguida, o Representante da Confraria Madrinha procedeu à “entronização”, com atribuição de bordão, escapulário e chapéu de:
 
António Adriano Escada Simões – Juiz, António Augusto Tavares Simões – Mordomo-Mor, e João Manuel Navarro Pina – Mordomo-Ecónomo.
 
O passo seguinte foi a entronização dos novos Confrades, desta vez feita já pelo Juiz da Confraria do Torresmo Beirão, acompanhado cerimonialmente pelo Mordomo-mor e pelo Mordomo-Ecónomo:

Augusto Nelson Nunes Galante
António Manuel Pinto Dinis Marques
Ângelo do Carmo Lourenço
João Manuel Fontes Dinis
José Joaquim Pinto da Conceição
António Manuel de Almeida Ventura
António Augusto Borges Lopes
António Marques Tavares
José Manuel da Costa
Agostinho Simões Marques Antunes
Fausto António Fontes Frade
 
Seguiu-se então, o juramento dos “Deveres dos Confrades”, e a assinatura do “Livro de Honra”.
 
Por último coube aos Confrades convidados a imposição dos Pins aos novos Confrades.
 
O Juiz-Mor encerrou a cerimónia com agradecimentos e cumprimentos às outras Confrarias e a todos os presentes.
 
Seguiram-se fotografias do grupo que serão memórias fundamentais, como primeiros registos, da história da novel Confraria.
 
Foi então chegada a hora de ser servido um magnífico almoço, com as iguarias que fazem jus à existência da nossa Confraria: Arroz de Suã e o afamado Torresmo Beirão.
 
Satisfeito o apetite, com pratos principais e muito apetitosas sobremesas, foi a vez de alegre cavaqueira, que, aliás, esteve presente no decurso do almoço.
 
Ao fim da tarde foram as despedidas efusivas, com abraços especiais para os que vieram de mais longe, vincando a sua presença e agrado nesta Cerimónia, que vai ficar para a História da Confraria do Torresmo Beirão, em Junho de 2014.

Fotografias
(fotos de D. Paula Antunes) 
 

20 de julho de 2014

Visita às Minas da Panasqueira

VISITA ÀS MINAS DA PANASQUEIRA

DIA 10 DE AGOSTO DE 2014  ( Domingo )
 
Esta visita é para homenagear todos os “MINEIROS LUSOS” e em especial, a todos os filhos das gentes desta terra, que na procura de uma vida melhor, tiveram que passar pelos trabalhos subterrâneos das “MINAS DA PANASQUEIRA” hoje com mais de 118 anos de existência.

A visita será para todos os VILAFRANQUENSES, e terá o seu início no largo da CAPELA pelas 9 horas da manhã, (se possível em autocarro camarário) paragem nas PEDRAS LAVRADAS pelas 10 horas para um cafezinho e desfrutar da magnífica paisagem da Serra da Estrela, e posterior chegada às minas da Panasqueira pelas 11 horas.

No cinema das minas, teremos um ou dois filmes sobre os mineiros da Panasqueira dos anos setenta.
O almoço será no restaurante “GASÓMETRO” com um custo de 12,50€ e de seguida será feita uma visita ao museu da mina.

No regresso a Vila Franca haverá uma paragem na praia fluvial de Loriga, onde será narrada pelos próprios, a maior fuga policial das nossas gentes que deram origem aos filmes de Hollywood  chamados “DESAPARECIDOS EM COMBATE NAS SILVAS DENSAS DAS MATAS DE LORIGA” e “VELOCIDADE VERTIGINOSA NAS ESTRADAS DA SERRA”.

Para reservas ou dúvidas, contactar Fausto Frade (925 672 768 / 919 270 408).
  

7 de julho de 2014

UDV - União Desportiva e Tuna Vilafranquense - 80º. Aniversário



80 Anos da U D V -
União Desportiva e Tuna Vilafranquense,
fundada a 8 de Julho de 1934.
 
Há uma Sessão Evocativa com Beberete.  Estão Convidados os Sócios e Amigos da UDV; o Presidente da Câmara Municipal de Oliveira do Hospital; o Presidente da Junta de Freguesia e o Presidente da Assembleia de Freguesia da União das Freguesias de Ervedal e Vila Franca da Beira; o Presidente da Junta de Freguesia de Seixo da Beira, de entre outras individualidades.
 
Também representantes das várias Colectividades Populares da Cordinha - esta a parte Norte do Concelho de Oliveira do Hospital onde Vila Franca da Beira se insere.
 
O Presidente da  U D V
João Dinis

5 de junho de 2014

Confraria do Torresmo Beirão


As primeiras Cerimónias da Confraria do Torresmo Beirão, vão realizar-se no próximo dia 21 de Junho de 2014 (Sábado), à noite, na sede da UDV. Serão proferidas algumas palestras e praticados alguns rituais, entre os quais, a entronização de Confrades. Vão estar presentes, Confrades de outras Confrarias, especialmente, convidados para o efeito.

14 de março de 2014

XXIII - Festa do Queijo da Serra - Oliveira do Hospital

foto "Folha do Centro"

Tradição ainda é o que era na queijaria dos Lameiras