15 de dezembro de 2014

Conto de Natal - Renato Nunes

Conto de Natal: “Família que reza mantém-se unida”
 
            Atravessavam-se quilómetros e aquele apelido, por si só, era chave infalível para entrar em qualquer cofre-forte: “– Sabe, venho da parte do sr. Forjaz”. E a casa escancarava-se mesmo à frente dos nossos olhos, sem qualquer pergunta adicional.

            A família Forjaz construíra um dos maiores impérios da nação, graças, em primeiro lugar, à compra e venda de habitações. Ao velho Forjaz costumavam, de resto, chamar o rei do imobiliário, o que curiosamente até rimava com milionário.

            Manuel Antunes de Pina Forjaz nascera em Vila Marim, no norte do país, no seio de uma família da astuta burguesia. Crescera numa velha casa de granito com vista para um penedo onde alguém um dia inscrevera uma frase, que sempre guardaria inconscientemente por dentro: “Família que reza mantém-se unida”. De resto, como não quisera queimar as pestanas com os livros, acabara por casar-se com uma dama da nobreza, por sinal bem mais velha, que, segundo acreditava, lhe poderia garantir o prestígio de um nome azul até ao fim dos dias.

            Logo após o matrimónio, partiram para a capital e, graças ao belo pé-de-meia que traziam escondido, conseguiram adquirir uns vastos quilómetros de terreno a escassos quarteirões do Tejo. Apenas dois anos volvidos, revenderam alguns lotes e ganharam o suficiente para adquirir três belas moradias na zona mais cara da cidade. A histórica Olisipo crescia então a olhos vistos e o cobiçoso Forjaz, cada vez mais raposo, não perdia a oportunidade de ceifar a seara.

            Passaram-se anos e anos, os suficientes para que a família Forjaz se tornasse sinónimo de sucesso em todo o país. Aos poucos, começaram a minar as mais variadas áreas: restauração, saúde, vestuário e, já numa fase mais recente, uma petrolífera – os reputados investidores diziam que o ouro negro era o único futuro do país e o cobiçoso Forjaz, cada vez mais lampeiro, em tudo o que via cheirava dinheiro.

            Todavia, sobretudo a partir de uma determinada fase da vida – talvez porque nunca tivessem filhos – os dias começaram a parecer-lhes insuportavelmente iguais. O casal Forjaz sentia a rotina a amargar-lhe na boca: acordar às 5h00 da madrugada, engolir o pequeno-almoço, separar tarefas (– tu vais à clínica!; – tu segues para os restaurantes…), atravessar a confusão dos carros parados nos semáforos, respirar o ruído do fumo a fugir dos escapes das chapas andantes que acabavam de arrancar. E no meio de tudo isso uma insuportável sensação de profundo vazio. Um vazio que, na verdade, contrastava com as inúmeras pessoas que diariamente recebiam no conforto das suas casas repletas de festas simuladas. Silêncio.

            Forjaz casara-se com pouco mais de 18 anos. Maria teria na casa dos 30. Durante todas as suas vidas, nunca haviam conhecido o sabor da fome, nem sequer algum dia haviam pensado em tal realidade. As suas habitações eram fartas e as mesas estavam sempre recheadas com tudo o que de melhor existia. Ainda assim, invadia-os a solidão, uma desgastante e insuportável solidão que a cada minuto os fazia perguntar o sentido da sua condição e, ao mais pequeno pretexto, os conduzia à discussão.

            Um dia, Maria aproximou-se do velho Forjaz e, estendendo-lhe delicadamente as mãos, mostrou-
 -lhe uma caixa de sapatos, cujo interior fora forrado com um pano de seda. Lá dentro, dormitavam dois gatinhos recém-nascidos, ainda com os olhinhos bem fechados. O velho Forjaz coçou a cabeça e sorriu longamente, parecendo assim aprovar a ideia da mulher para combater aquele vazio. De resto, gostou tanto que, logo no dia seguinte, foi ele próprio que repetiu a proeza e trouxe para casa dois cãezinhos que passaram a ser uma das poucas alegrias dos seus dias de milionário solitário.

            A chegada dos irrequietos bicharocos trouxe luz à escuridão do casal e a partir daquele momento os dias nunca mais foram os mesmos. O velho Forjaz via os tapetes roídos e as cadeiras arranhadas, mas perante o olhar complacente dos novos inquilinos nem sequer conseguia erguer a voz para proferir a mais breve reprimenda. Limitava-se a sorrir à esposa, que a todo o custo tentava esconder as asneiras dos bicharocos! Bastaram alguns dias e tornou-se evidente que a harmonia trouxera finalmente uma família à moradia. E pela primeira vez havia alegria.

            Passaram-se meia dúzia de anos e os animais cresceram alegremente na companhia uns dos outros. Nem os cães corriam atrás dos gatos, nem os felinos se intrometiam nos afazeres caninos. Quando muito, nos tempos mais recentes, lá vinha um miar mais assanhado ou um latido mais assustador sempre que a comida parecia não chegar para todos. A princípio, os quatro patas – amamentados no tempo das vacas gordas – começaram a estranhar a diminuição progressiva da ração, mas ao fim de algum tempo lá acabaram por convencer-se que tudo aquilo faria parte de uma dessas dietas malucas que a dona tantas vezes prescrevia a si mesma. Arre que era teimosa!

            Mesmo Fadista, o possante perdigueiro de orelhas caídas que mais se aproximara do coração do velho Forjaz, deixara de conseguir avançar o suficiente para sentir a mão no pêlo a afagar-lhe os sentidos. Aliás, ainda se lembrava muito bem quando, talvez há menos de duas semanas, tentara fazê-lo e tivera mesmo de fugir a sete pés, para não levar com o ferro da lareira em cima da cachimónia. Gerou-se então longa discussão entre a bicharada por muitas noites dentro.

            Um dia, porém, logo pela madrugada, chegou a ansiada explicação. Na mansão todos puderam ouvir que os Forjaz acabavam de decretar falência e em breve tudo seria entregue aos credores. Num ápice, as empresas foram seladas e quase de imediato vendidas em hasta pública, o mesmo sucedendo com o restante património ampliado ao longo de décadas e décadas de investimento e dura poupança.

            Então, o velho casal, já sem o prestígio que o dinheiro oferece ao nome de baptismo, foi forçado a deixar tudo para trás. Quanto aos animais que um dia haviam acolhido, não hesitaram em escorraçá-los imediatamente com sete pedras nas mãos. Pedrada após pedrada, os desorientados bicharocos ganiam dolorosamente e rodopiavam em volta da porta, nunca se afastando o suficiente para ficarem em segurança. Quando, por fim, as pedras deixaram de cair sentaram-se sobre as patinhas traseiras e aguardaram.

            Manuel e Maria abandonaram a mansão pela porta das traseiras numa manhã de Inverno. Mais sós do que nunca, arrastaram-se pelas ruas da cidade durante várias semanas. Sentiram frio, conheceram a fome, dormiram nas entradas dos edifícios que no passado haviam possuído e, ironia das ironias, acabaram a vasculhar a comida dos restaurantes onde ainda há pouco davam ordens. E enquanto percorriam as ruas em busca das portas abertas sentiam o desprezo das inúmeras visitas que durante anos e anos haviam diariamente recebido nos seus lares…

            Numa dessas intermináveis noites em que vagueavam pelas ruas abandonadas atracaram na velha mansão onde um dia haviam imperado. Repararam então que no interior da casa havia luzes, muitas luzes, e decidiram esperar atrás de um enorme arcipreste que crescera do outro lado da calçada. Estava escuro e, por certo, lá dentro, o jantar estaria prestes a terminar. – Talvez depois algum empregado venha despejar os restos das refeições no lixo... – matutaram para os seus botões. E esperaram, sempre escondidos.

            Estava frio, muito frio mesmo, e os trovões sulcavam assustadoramente os céus. Manuel abrigava a mulher debaixo da gabardina, apertando-a contra o peito quando, subitamente, o ansiado criado da mansão ultrapassou o secular portão de castanho. Viram-no debruçar-se e assobiar, durante alguns minutos. Logo depois, chegaram dois cães franzinos, com as caudas a abanar, fixando atentamente o homem da camisa branca que lhes estendia os restos da noite. O empregado aproximou-se e antes de partir afagou-lhes ternamente o cachaço, sem sequer ter tempo para ver os dois gatos que, entretanto, se haviam acercado da desejada comida.

            À distância, Manuel podia jurar conhecer aqueles animais de algum lado, mas a miopia cada vez mais acentuada imprimia uma perspetiva impressionista a todas as imagens que lhe chegavam à mente. Então, deixou o homem da camisa branca fechar completamente o portão e, depois de avançar alguns metros, quase sentiu um aperto no peito, quando identificou os bicharocos que ainda há tão pouco tempo havia escorraçado à pedrada. Percebia agora que eles sempre haviam permanecido por ali…

            Pressentindo-os avançar para a desejada comida, Manuel assobiou o mais alto que conseguiu, enquanto coxeava em direção ao centro dos acontecimentos, arrastando atrás de si a sua mulher, cada vez mais fraca e dorida pelo gelo da noite, pelo imenso poder da fome. Vazio.

            Ao assobio, os animais olharam em uníssono para o casal, completamente absortos da cabeça às patas, sem qualquer movimento, talvez estupefactos pela inesperada presença dos seus donos. Até que, sem que nada o fizesse prever, um a um, todos se desviaram da fumegante refeição, como que abrindo caminho aos estômagos vazios daqueles que ainda recentemente os haviam abandonado.

            Vendo aquela surpreendente prova de fidelidade e bondade, Manuel baixou ternamente a face e apertou a mão de Maria com mais força. Negociante de poucas palavras, sempre lhe haviam ensinado que um homem não chora, e por isso continuou a arrastar a mulher pela calçada fora. Depois, sempre juntos, sentaram-se lado a lado, recolheram a comida do chão e começaram a atirá-la, alternadamente, a cada um dos animais, também eles profundamente esfomeados. Já há vários dias que nenhum dava uso à dentuça.

            Nas ruas não havia ninguém. O frio descia silenciosamente das montanhas e atravessava cada ser até às mais profundas entranhas. Aninhados sobre a entrada da mansão onde um dia haviam crescido, os quatro patas envolviam-se num lânguido sussurro, rodeando ternamente os seus donos, com ou sem dinheiro, com ou sem roupas douradas ou insígnias imaginadas. Nem sr. Forjaz, nem sr. Manuel, nem conde, visconde, deão ou barão. Apenas e sempre os seus donos, finalmente de regresso. Nada mais.

            Ali mesmo, do outro lado dos seus antigos abrigos, não havia solidão. Afinal, também ali chegara, provavelmente, uma das maiores lições desta época: “Família que reza mantém-se unida” – e existem tantas formas diferentes de rezar…

            Naquele inesperado local, pela primeira vez na vida daquele casal foi Natal…

            [Natal,

            Ferida sem mal,

            Safanão de luz

            Que nos conduz

            A perceber

            Que apenas reencontramos

            O que somos

            Quando fugimos do artificial.

 

            Natal, cordão umbilical,

            Caminho que nunca se constrói sozinho;

            É preciso merecê-lo

            Para depois recebê-lo
            E não voltar a perdê-lo.]  

Renato Nunes